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“A máquina seguiu, a nossa vida não”: acidentes de trabalho em São Marcos expõem dor, incertezas e fragilidade da segurança industrial

Sem definição sobre indenizações, afastadas do trabalho e em tratamento contínuo, trabalhadoras relatam ao SMO como amputações mudaram suas rotinas, autonomia e futuro, enquanto dados revelam um setor que cresce sem garantir proteção adequada.

Atualizado em 16/12/2025 às 14:12, por Angelo Batecini.

Mãos de uma vítimas de acidente de trabalho em São Marcos, mostrando lesões graves e amputações parciais nos dedos, com feridas ainda em cicatrização e unhas longas em contraste com as pontas dos dedos perdidas.

As marcas da negligência estão nas mãos de Juliana (30) e Iolanda (50), uma das vítimas de acidente em uma metalúrgica de São Marcos, exibem as lesões permanentes e a amputação parcial dos dedos, resultado de uma máquina com falha. Foto: São Marcos Online.

Os acidentes graves de trabalho registrados recentemente na RAV Componentes, empresa metalúrgica de São Marcos, que resultaram na amputação de dedos de Iolanda e Juliana (nomes reais, a pedido das entrevistadas), vão muito além das estatísticas. Em depoimentos ao São Marcos Online, as trabalhadoras revelam como, em questão de segundos, perderam parte do corpo, da autonomia e da segurança emocional, e passaram a conviver com dor constante, medo, dependência, afastamento do trabalho e incertezas quanto ao futuro profissional e financeiro.

Ambas estavam no exercício normal de suas funções quando os acidentes ocorreram. Segundo relatam, a máquina envolvida não possuía dispositivo de segurança adequado, exigidos pela Norma Regulamentadora nº 12 (NR-12), e já eram motivo de preocupação entre os funcionários.

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“A gente avisava. Falava nas reuniões, comentava entre nós. Sempre diziam que iam melhorar, que estava em processo. Mas o processo nunca chegava”, relata Iolanda, a mais experiente e com maior tempo de empresa.

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O momento do acidente e o início de uma nova realidade

Juliana, que teve os dedos  amputados antes da colega, descreve o instante do acidente como um choque que ainda se repete em sonhos e crises de ansiedade.

“Foi muito rápido. Quando vi, já tinha perdido os dedos. O barulho da máquina, o sangue, isso não sai da cabeça. Até hoje, quando escuto um som parecido, eu travo.”

Iolanda afirma que, após o atendimento inicial, veio a dimensão real da perda.

“Na hora você não pensa. Depois é que vem o desespero. Eu olhava para a mão e não acreditava. A gente perde uma parte do corpo e parece que perde um pedaço da vida junto.”

As duas seguem em tratamento médico e psicológico. Ambas utilizam medicação controlada e relatam dificuldades para dormir, crises de choro e sensação constante de insegurança.

“O psiquiatra disse que é como um luto. Eu não perdi uma pessoa, mas perdi algo que era meu. E isso dói todos os dias”, revela Juliana.

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Afastamento, INSS e insegurança financeira

Iolanda e Juliana em entrevista ao São Marcos Online, relatam o momento de dor e de incertezas que vivem após os acidentes causados por negligência. Foto: São Marcos Online.

Desde os acidentes, as trabalhadoras estão afastadas das atividades e dependem do INSS, processo que descrevem como lento e angustiante. Segundo elas, não há clareza sobre indenizações, estabilidade futura ou retorno ao trabalho.

“A gente fica no escuro. Não sabe quanto tempo vai ficar afastada, se vai conseguir voltar a trabalhar, se vai ter indenização. As contas não param, mas a renda muda.”

Juliana relata preocupação com a possibilidade de não conseguir exercer novamente a função que tinha antes, como renda alternativa, como trancista (especialista em tranças).

“Meu trabalho sempre foi manual. Hoje eu não sei se vou conseguir fazer o que fazia. Isso mexe com a cabeça da gente.”

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Apoio inicial existiu, mas não resolve o depois

As vítimas reconhecem que houve atendimento médico imediato e algum acompanhamento inicial, mas destacam que o suporte não supre as consequências permanentes.

“O socorro veio, o atendimento veio. Mas o problema é o depois. O depois é todo nosso.”

Elas afirmam que a vida cotidiana se tornou um desafio: tarefas simples, como cozinhar, varrer a casa ou segurar objetos, exigem esforço e cuidado redobrado.

“Tentei varrer a casa, o cabo escapou, bateu na mão e abriu tudo de novo. O médico disse que qualquer infecção pode fazer eu perder mais”, disse Iolanda.

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Sindicato e empresa RAV discutem plano de segurança após acidentes com amputações em São Marcos

Medo de denunciar e silêncio em cidades pequenas

Um ponto comum nos depoimentos é o medo de denunciar irregularidades. As trabalhadoras afirmam que, em cidades pequenas, existe a percepção de que quem denuncia “fica marcado”.

“Existe um terrorismo velado. A pessoa sofre o acidente, mas se cala porque tem medo de não conseguir mais emprego.”

Esse silêncio, segundo elas, contribui para a repetição de casos.

“Se eu tivesse denunciado antes, talvez isso não tivesse acontecido de novo. Por isso eu resolvi falar. Não quero que outra pessoa passe por isso”, lamenta Juliana.

Sindicato aponta cenário preocupante em São Marcos

O Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul e Região acompanha o caso. Segundo o presidente Paulo Andrade, a situação das condições de trabalho no município é crítica.

“Temos cerca de 30 empresas metalúrgicas na base de São Marcos, com aproximadamente 4 mil trabalhadores. Se o Ministério do Trabalho fizesse uma fiscalização ampla, arrisco dizer que cerca de 20 empresas teriam problemas sérios, especialmente na área de segurança.”

Atualmente, o sindicato conta com cerca de 400 sócios na cidade. Entre as principais denúncias recebidas, além da falta de segurança, está o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho.

“As principais reivindicações hoje são pelo fim do assédio. Isso acontece dentro das empresas e muitas vezes não é denunciado.”

Emprego cresce, mas segurança não acompanha

Dados do Simecs – Termômetro de Mercado mostram que o número de trabalhadores da indústria em São Marcos cresceu nos últimos anos, passando de cerca de 3 mil em 2023 para mais de 3,7 mil em 2025. Do total atual, 2.468 são homens e 1.313 mulheres, distribuídos principalmente nos setores metalmecânico, automotivo e eletroeletrônico.

Para o sindicato metalúrgico, o crescimento do emprego não tem sido acompanhado por investimentos proporcionais em manutenção de máquinas, qualificação e segurança.

“Falta mão de obra qualificada, mas também falta incentivo para o trabalhador se qualificar e condições dignas para permanecer no setor”, completa Andrade.

Contexto estadual reforça alerta

Dados públicos indicam que, entre 2021 e 2023, o Rio Grande do Sul registrou cerca de 60 mil acidentes de trabalho, grande parte deles na indústria metalúrgica. Especialistas alertam que o número pode ser maior, devido à subnotificação.

“A gente não é máquina”

O pedido final das trabalhadoras é simples e direto: prevenção.

“A empresa cresce, produz, lucra. A gente não é máquina. Somos pessoas, temos família, temos sonhos.”

Elas dizem que falar agora é uma forma de evitar novas tragédias.

“Se isso servir para salvar uma mão, um dedo, uma vida, já valeu a pena.”

O São Marcos Online aguarda o parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT) e segue acompanhando o caso. O espaço permanece aberto para manifestações da empresa, das autoridades e de outras instituições envolvidas.

A cobertura tem como objetivo informar, dar voz às vítimas e contribuir para a prevenção de novos acidentes de trabalho.